Ouve um chamado distante. Um riso, um lobo, um lamento. Uivo. Milanovítch acorda de um sono profundo. Na porta de sua cabana jazem três rifles descarregados depois que Mila resolveu parar de caçar. Seus dentes podres e seus olhos amarelos revelavam seus hábitos alimentares cada vez mais degradados. Impoluto, seguia à chegada de seu último inverno. Sonhava com uma pessoa que nunca conhecera: loira e sem aparente beleza. Fria e indiferente nas noites de verão, quando a luz do sol nunca descia completamente no horizonte. No inverno, seu calor era radiante e sua pele dispunha de uma fragrância que só o próprio Ivan Milanovítch conhecia.
Mila chegava das estepes alvas em seu cavalo branco. Iluminado pelo sol glacial de forma pálido como o entardecer em algum subúrbio parisiense. Porém, ao invés do cinza, mil tons de branco se descortinavam aos olhos bem treinados de Mila e sua mulher invisível. O nome dessa mulher de origem não conhecida, possivelmente uma foragida germânica ou de algum cantão da Ucrânia onde se aglomeravam as legiões de estrangeiros. Alguns haveriam sido levados para a Sibéria ou Kazaquistão onde un passant povoaram a cabeça de Mila de fantasias.
O temido vento de inverno se aproximava. “Vindo de tão longe”, assim pensava o ex-combatente, general Ivan Milanovítch, “veio roubar minhas memórias”, única coisa que o general imaginava ter, “agora talvez me vença”. E o vento de inverno soprava em velocidade e força estrondosas, durante quarenta dias e noites.
Em seu delírio, Mila respirava o ar que vasculhava o fundo de seu pulmão. Sentia as bolhas de ar suspensas no interior da cabana sem nunca tê-las visto. Todas as panelas, canecas e facas tinham de serem guardadas em lugar fechado à chave. Toda essa cena de confusão tampouco atordoava Mila, concentrado em manter em si seus pensamentos.
Agora haviam tomado forma de mulher. Mas não a germânica, outra. Talvez sua mãe viesse vê-lo em pensamento.

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