Nove dias

Para ler ao som de

 



"nãos" e “por quês” começam a se repetir muito.
Faço rima com as frases que vitrifico.
Chamo-Te com T na declinação dos verbos.
Temo-te. 
Crucificou o Senhor seu filho amado. Por quê?
Para eu se eternizasse na figura de mártir?
Para que fosse amado eternamente?
Os Tés preenchem o vazio da Sua narrativa celestial.
Ésses são bondosos, Tés são maus.
Cristo é isto! Um pouco desse sucedâneo de perguntas labiríntico. Cristo é a verdade! (?)
Um S é duas curvas ligadas que não se ligam a nada. Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura.
“Por que me abandonaste?” indagou seu filho. Antes de perdoar-nos por brincar por sermos nesse Seu quintal azul que chamamos Terra.

Perduram as farras do Outro, apesar de tudo. E,
sei que não,
cada segundo que roubei de mim mesmo.
A madrugada é fria... e o sobrou da vida?

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
essa intimidade perfeita com o silêncio.

Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo.Perdoai. Eles não tem culpa de ter nascido

O poetinha nos disse o que ficou:

 Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
de refletir-se em olhares sem curiosidade, sem história.
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho,
essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.


 Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
na busca desesperada de alguma porta
quem sabe inexistente
e essa coragem indizível diante do grande medo
e ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer
dentro da treva.


 Resta essa imobilidade
essa economia de gestos
essa inércia cada vez maior diante do infinito
essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
essa irredutível recusa à poesia não vivida.

 Resta essa comunhão com os sons
esse sentimento da matéria em repouso
essa angústia da simultaneidade do tempo
essa lenta decomposição poética
em busca de uma só vida
de uma só morte
um só Vinícius.

 Resta esse coração queimando
como um círio numa catedral em ruínas
essa tristeza diante do cotidiano
ou essa súbita alegria ao ouvir na madrugada
passos que se perdem sem memória.

 Resta essa vontade de chorar diante da beleza

essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
essa imensa piedade de si mesmo
essa imensa piedade de sua inútil poesia
de sua força inútil...

 Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
de pequenos absurdos
essa tola capacidade de rir à toa
esse ridículo desejo de ser útil
e essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

 Resta essa distração, essa disponibilidade,
essa vagueza de quem sabe que tudo já foi,
como será e virá a ser.

 E ao mesmo tempo esse desejo de servir
essa contemporaneidade com o amanhã
dos que não tem ontem nem hoje.

 Resta essa faculdade incoercível de sonhar,
de transfigurar a realidade
dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é
e essa visão ampla dos acontecimentos
e essa impressionante e desnecessária presciência
e essa memória anterior de mundos inexistentes
e esse heroísmo estático
e essa pequenina luz indecifrável
a que às vezes os poetas tomam por esperança.

 Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.

 Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

 Resta esse diálogo cotidiano com a morte
esse fascínio pelo momento a vir¹


Perdão, perdão, perdão!
perdoai seu filho que também sou, pois também Te chamo de Pai. Perdoai por Seu amor divino. Mostra-me, novamente o caminho. Prometo seguir direitinho. Sem esses, sem curvas tortuosas a beira do abismo.
Perdoa meus erros de passado. Eu peço nesse dia que se finda, fim da tarde. A madruga é linda, mas roubou-me o sono dos anjos. Perdão por existir nessa forma inexequível de ser mais um homem perdido. Perdão pedem minhas lágrimas de fogo agora a escorrerem lentamente enquanto escrevo. Perdão pelos desmandamentos. Quero voltar a ser seu amigo. Quero fazer as pazes com você. Você joga futebol? Vamos criar alguma coisa juntos pra deixar aqui embaixo. Alguma coisa boa, nem que seja uma boa impressão apenas. Estou a teus pés, como Ana Cristina César cuja vida se esvai tão cedo. Ateu, se um dia descri de ser Seu, a teu perdão eu peço. Nunca peço sem cedilha. (peco)
Quando criança, aprendemos a noção de Espaço, pra isso mesmo: colocar o traçinho embaixo do Cê, pra não mudar o sentido de tudo. Pra termos noção do til acima do não, pra sabermos qual será  rumo certo, quando gerarmos signos linguísticos. Pra mais tarde compungirmo-nos de não ter visto o aviso, o sinal, o signo.
o advento da primeira tecnologia, a invenção do alfabeto grego, pelos gregos, à luz do panteão olímpico.. Os egípcios usam signos hieróglifos um tanto difíceis de serem entendidos.

Ergo-me com vagareza invejável, ou lastimável. Recarregue “salvar como” ande logo, ser inábil... antes que a noite chegue de surpresa, antes o sol se esconda de todo.
tenho que subir pelos “bambuzinhos” que são minha referência. Não me desespero em sair das moitas de capim quando elas me prendem. Desprendo-me com frieza mental, mesmo que a restrição de movimentos cause a fobia de sentir-se, e estar de veras, preso. As forças se esvaindo lenta-mente. Penso Linear-mente. Preso no emaranhado de arbustos. São incapazes de ferir meu ego, penso. Desvencilho-me e sigo, graças a Deus.
Deixo por lá as vestes rotas, os andrajos não quistos, os miasmas subcutâneos. Sangue à prova de espinhos...  
Do alto da serra uma enorme fenda vai formar esse rio no qual eu estava. É tenso afastar-me da água, mas pior é enfrentar o vento.
Alcanço forças, alcanço a picada. Não via uma trilha bem demarcada depois de muitas horas desbravando mato. De alguma forma sinto uma pequena alegria.
Seguir até a praça no sopé da encosta levará só alguns minutos.
Cada segundo vale ouro. Meu tempo é curto.

Vejo a subida magistral que conduz ao topo. Meu Deus! Estamos juntos?!
Começo a dolorosa investida sobre a pedra abrasiva. Não posso perder o sentido. Seguir a pino em ângulo contínuo em que o declive rochoso se apresenta. 60 graus contíguos... A cada três passos me fogem as forças nas pernas. Sento de costas e apoio a mochila = salvação & estorvo. Queria abandoná-la, arremessá-la morro abaixo! Livrar-me daquele peso.
Peço forças pra galgar mais três ou quatro passos acima. E sento-me de novo. E peço novamente a Deus que me dê forças pra conseguir apenas mais três passos. Desse momento, o que me vem a cabeça, é exatamente isso. É o enfrentamento do Eu sem memória, é o desafio da sobrevivência diária, é optar sem pensar por sensações corpóreas, e tornar-se vidente. é o puro fenômeno da existência. A sabedoria atávica que varou a noite dos séculos. A memória celular de simples animais que somos. Que estamos a gerar impressões de nos mesmos. A produzir e criar meios de representar o objeto de nossos sentimentos.
A balbuciar feito crianças o que é incerto e derradeiro.
Que ânsia distante perto chora?
Tudo é disperso nada é inteiro.

ninguém sabe que coisa quer
ninguém conhece a alma que tem²


além do mal e do bem... subindo e pedindo a Deus.
Alcanço os céus. Bosta! Tenho que andar lá em cima um bom bocado. Ninguém merece... isso já era coisa de índio sem programa. O astro luminoso já se inclinada, preparando pra descer. Eu ando agradecido e blasfemando naquele alto agreste, árido, atemorizante. As águias seguiam meus passos.
agora chego ao ponto mais alto. Uma pedra cujo formato é parecido a um cavalinho de carrossel indica que estou no pico! 2068m acima do nível do mar. Sim, pela direita da pedra do cume, rodeando devo chegar ao abrigo que desejo. A toca é grande, tem nome de BNH, por poder agrupar um amontoado de gente, como nas repartições públicas.
Desço. Conheço. Sei como chegar.
Mas de repente!
Onde esta a trilha? A fenda frontal afronta minha certeza.
Catete!
Volto e tento seguir pela frente. a pedra do topo também leva ao abrigo.
Porém, há fendas de 30, 40 metros. Passei ao lado de várias me segurando pelos dedos. Você não vai me deixar cair aqui, né? Eu pensava. Tentando me encontrar, encontrei a toca dos guias que abeira uma dessas aberturas. Tentava não olhar profundo desses buracos profundamente sinistros.
Por lá convivem seres invisíveis. Escravos do tempo do império, que foram enterrados vivos por seus benfeitores. Depois de cavarem a cova de um tesouro que ali jazeria escondido. Eles mesmos a própria cova cavavam e jaziam eternamente.
Por lá habitam elementais da natureza, enraizados seres verdes.
Além de fadas, duendes e gnomos, com certeza.
o medo era uma brisa suave.

vejo a varanda da BNH. Entre nós há uma fenda! Em meio milionésimo de segundo, calculo a distância, apanho fôlego, me equilibro e Pulo!
De cima pra baixo um desnível de meio metro, de largura mais de um e meio!
Entre a bonança e o isolamento, uma fenda.
Se caísse ali um urubu teria de contar pro outro que alguém...
Até que chegasse a notícia eu talvez não estivesse vivo.
Estou salvo! Salvo pelo pulo do gato!
minhas botas resoladas “já eram” e mostram o preço da caminhada.
meu corpo novamente ferve em ebulição. Hipertemia! alerta!






Chego ao abrigo. Parece que faz tempo que nenhum ser humano visita aquele lugar tão bonito, mas também tão asilado, oculto, escondido.
A única coisa que consigo fazer ao tirar definitivamente a mochila é:
estender o isolante térmico,
colocar uma vela ao meu alcance,
abrir o saco de dormir e,
ardendo em brasa entrar nele, que ironicamente protege do frio...

Vinte minutos e o sol também se esconde em definitivo. Segundo meu relógio devia ser por volta de oito horas da noite.
Permaneço estático. Imóvel, colapsado. Bicho abichado, semimorto. Sem fluxo de ideias, oscilação ou movimento.
Eu havia conseguido. Permaneceu marcado em minha carcaça. Uma aventura pelo mar Adriático de montanhas do Caraça.
“Uma estrela brilha em sua cabeça” isso é o que disse meu corpo.
O gigante então perguntou meu nome...

 “O meu nome é Ninguém”. Polifemo diz-lhe então, como que prometendo um favor: “Pois bem, Ninguém, meu amigo, serás tu o último a ser comido.”³

Calculo que passou uma hora até eu conseguisse abrir os olhos.
O brilho do céu iluminava a entrada da caverna. Breu total nos arredores.
Acendo a vela, com esforço abro um pacote de biscoito.
Um pedaço esquecido de chocolate pra sobremesa.
Água, cigarro e boa noite.
Eu consegui!

No dia seguinte ao descer tive uma crise de choro e a clamava a misericórdia daqueles que amo, amei e sempre vou amar.

Desculpa mãe, pela dor que passamos juntos naquela casa, que aos domingos parecia à caverna do Drácula.
Desculpa pai por não ter tido a chance de me despedir, naquela hora. O seu retrado ficou guardado na gaveta
quando você foi embora senti muito a sua falta. Dormia na cama da mamãe pra não sentir tanto desalento. Sentia fome e não comia. A vida não valia a pena.
A noite é o intervalo do dia. E o diabo falou meu nome. Desculpa.
Agora estou com Deus, em Deus e para Ele.
Desculpem-me. Por agora, por outrora, por tudo que passei.
Agora estamos juntos pra sempre.


Por toda a eternidade.

Gus-ta-vo









citações

¹    O Haver. de Moraes, Vinícius.

²    É a hora! Pessoa, Fernando.
³   Odisseia, Homero. Trecho diálogo Ulisses com o gigante Polifemo.





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