Vida nossa...



Oi Deus,
Aqui estou. Segue a noite em que estive no alto do Pico do Canjerana. O vento soprava forte. Fustigaste o topo da montanha. Vergalhaste as plantas e arbustos. Açoitaste a lusco-fusco dos bichanos. Azorragaste a loba matreira (gostou do verbo?). Zurziste com zunido o menor dos insetos. Chibataste a porta do meu quarto que fiz com uma placa de metal que ali se encontrava, mas ainda chegarei nesse evento.
por volta das oito da noite (eu calculo) o vento ainda não dominava a cena. O evento da hora era fazer a janta, tão esperada, e ordenar o que estivesse por perto.
Faria comida com fogão de lenha. Lenha não me faltaria. Lenha eu teria por toda madrugada. Lenha eu teria a contento.
a vela de citronela, ao lado de onde eu  ia colocar a cabeça, só fez atrair mais mosquitos, de todas as espécies. Ao invés de surtir o efeito esperado que é repelir os bichos.
Além disso, seduziu o lagarto, que veio saboreá-los. Uma refeição fácil prum bicho preguiçoso. Deus! como ele chegava perto. Quase pude sentir seu cheiro, e ele quase me deu uma lambida.
queria mesmo era comer mosquito, bicho doido. Deve que dorme o dia inteiro. Só ficou batendo o rabo agitado quando eu cheguei por aquelas bandas. Como quem fica ouriçado por não ver gente há muito tempo. Fora isso. Nada. Mas que dizer? O bichano tava “em casa”. Folgado como ele só.
 
Você tá me ouvindo? 
Agora faz chuva lá fora e às vezes eu tenho a nítida impressão de que você não tá me ouvindo. Será que to escrevendo pro Nada? Será que eu falo sozinho? Ouço cada pingo de chuva. Aumenta depois diminui, assim como a dor que sinto. Cada pingo vale água. Cada ouro, uma lágrima. Atiro pra fora aquilo que guardei dentro de mim. Brota, jorra, mas para?
Reduzir para ajustar, desconectar, redimensionado ou ignorar sentença?
Adicionar ao vocabulário. Devo cara de otário.
Nem levanto, mas ando um tanto cansado dessa prosa.
Nem me lembro do quê tava falando...

Conversar Contigo é foda. Mais cedo um casal brigava na casa vizinha. A menina chorando queria a mamãe. O rapaz silencioso deve que colocava o terror. E eu senti que por isso todo cantor de samba já passou um dia. Chego à janela, metediço “respeita a moça, corno! deixa disso” quase grito “amanhã você conversa com ela. Ou não”, mas me contive. A vida segue. Deus irmão. Com Sigo ou sem Tigo sossegaram. A curva faz tantas vidas. A vida fez tantos desse...

Ah, sim. O lagarto. Tudo isso, todo esse prelúdio, sabe por quê? Matei o pobre do lagarto. Esse papinho de inicio, essa prosa de bom moço, tudo balela, só tentando me salvar. Culpa é um caso incrível.
Lembrei-me do amigo Espinosa, amigo da natureza. Depois de tano fugir pelo globo de contendas religiosas, que cristãos novos que eram ele e seu pai Manuel, expulsos de Portugal por capricho de rei espanhol, depois de retornar à Holanda (lembrou-me Cândido, o otimista, que tanas voltas deu na gleba terrestre. Um opúsculo de Voltaire, que Você com certeza leu. Aliás, Voltaire, o iluminista, disse um ia a seu respeito “Respeito o meu Deus, mas amo o universo”)
Já instalado em Amsterdã se re-re-converte ao judaísmo, salvo-conduto ao ferino encalço anglicano e assume o apodo de Bento, ou Benedictus, relativo de Baruch no latim que conservar-se no tempo. Adotou uma estrutura clássica de formular o pensamento. Escreveu toda sua obra no próprio latim. Acho que pra não haver problemas na hora da interpretação. O latim é uma língua morta, coisa mais mórbida... Os mortos são as pessoas mais confiáveis.
Em sua obra A ética, um capítulo se sobressai, Da Servidão Humana. Lança sobre nós aquilo que fazemos, em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém.
Por não ser mais católico apostólico romano; distante do sagrado fogo, do bestial Santo Oficio; diante da imagem alquebrada de um molengo Deus tirano, a quem servir com tanto esmero?
Quando escreve seu nome Deus ao lado há um parêntese (ou a natureza) e assim segue. Deus (ou a natureza) após inúmeras frases. Como contestar a natureza? Como nega-la? Como negar que há a natureza? E a própria natureza humana.
Aqui entra a servidão humana, que, de fato, anuiu a nossa conduta. Sem ou com a nossa aquiescência, o homem condescendeu, sem ou com que, tomasse conta.

Eita civilidade!
Eita servidão humana.
Eita eu, eita você, eita Deus!
Eita vizinho corno, eita mulherada!

Eu aqui falando com Deus, (ou será de Deus pro Capeta?) tentando  isentar minha culpa, passado alongado preâmbulo “o gato subiu no telhado...”  o óbvio é tão provável que não sou Edgar Poe, aguardar que um lagarto evocasse a multidão de monstros verdes. Indícios de suspense. ulula contra ele tamanha obviedade.
TVE não noticia, mas teve de acontecer. TV educativa, criançada, isso não se faz. O bicho tava que tava. E ele tava demais. Tentei espantá-lo, mas nada. Camuflava-se numa fresta como se eu não estivesse vendo, e voltava logo em seguida. Só faltou me pedir sobremesa, ou quem sabe puxar conversa. Já não duvidava de nada naquela insólita cena.
Acho que gostou da festa, pois sua vida devia ser extremamente monótona. Quando eu o repelia o descarado se escondia.  Mas nada de dar fora e fazer nada com os ouros seres da mata, ou vadiar na floresta.
 Eu tocava o cara com um pedaço de podre de lenha. Ele insistia em ficar. Último sorriso.
Sei que numa dessas, sem querer, sem premeditar, bati  a vara de lenha que resvalou (juro por Você, brother Deus, Deus irmão) na cauda do bicho e o bicho, num só abalo, desgrudou da parede de repente e despencou direto no chão. Vacilou! Caiu de barriga pra cima, em decúbito dorsal. Caiu com as patinhas para o alto, naquela posição lânguida. Como um cachorrinho que finge de morto. Parecia uma vitima do crime, o pobre inocente.. Que só vendo. Carvalho!
Que quê eu fiz!?
Arrependi-me na mesma hora. Senti remorso.
Matei meu único amigo! Foda Foda FODA!
Ao mesmo tempo dali pra gente, quem passa a reinar “SOU EU!” gritei diante da cena.
Última cena. Segundo ato. Hamlet e o lagarto.
Cravo minha espada no peito do insistente rei lagarto, que há pouco havia sido deposto. Levo-o para fora num ato de loucura, tomado pelo abjeto senso de inclemência. Ríspido, retiro o corpo rígido do recinto e parto para terreno aberto.  Asseguro-me de prendê-lo no alto de um arame farpado. Proclamo mais uma vez meu brado de extremismo “QUEM REINA AGORA AQUI SOU EU!” na cegueira inefável de quem mata. Na indizível busca de alguma alivio, volto para o conforto da torre. Vou aquecer-me para esquecer o fato. O crepitar do fogo distrai meu pensamento.

Nesse dia, com a barriguinha vazia, fiz mais comida do que aguentei comer.  Sobrou metade do meu jantar, mais ou menos, o que era muito. Havia carboidrato na massa, proteína do queijo gorduroso, no bacon picado e no torresmo de soja, nos grãos de milho, algum sabor de coisa natural, e no molho de tomate picante com atum o toque final da gororoba. Queijo parmesão ralado por cima, entre, dentre, dava o clima gourmet.
O clima mesmo era de pura ventania. Zunzunir flagelante. Frio da porra. Certa decisão não ter descido pra nascente. Mesmo a fogueira ao meu lado, esgotada pelo intenso favônio, consumia-se rapidamente. Toda hora colocando mais lenha para o fogo não dissipar-se. Até com o passar do Tempo, cansei e adormeci.
Sonhei com a(s) águia(s) que me seguiam no caminho. Eram várias... diversas plumagens. Ora gris esbranquiçada, ora negra tingido de vinho, ora marrom e terracota, boas-noites passei sozinho...
O vento não deu trégua. Chibatou minha porta, uma placa de metal. Chibata de passa-hora, in the silence of a dawn. Flagelaste, meu dedos, meu nariz, meus medos.

Fizeste tua desforra como em Sodoma e Gomora.


                                                                        Eu não tenho nenhuma coragem, mas procedo como se a tivesse, o que talvez venha dar ao mesmo.
                                 
Gustave Flaubert

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