Belo Horizonte, 24 de maio de 2014

“O ato mais sublime é colocar outro a sua frente”
William Blake

Mãe, 

Quando mudamos para esse apartamento, pensei que a vida fosse me dar uma chance, Ou melhor, pensei em dar a ela uma chance. 
A chance de ser bela, suave, tranquila. A chance de ser apenas uma vida a ser vivida. Sem brigas ou discussões. Sem lágrimas ou cicatrizes, sem mágoas ou manchas de sangue. Sem discursos de arrependimento, sem lamentações. 
Pensei em não pensar nas coisas que não fiz ou não fui. Sem remorso. Sem ócio, sem ódio, sem tédio. Sem remédios imprescindíveis. Sem associações indivisíveis, sem nuvens negras sobre o meu passado. Outros tempos, sem tantos contratempos – inevitáveis em nossa passagem pela existência. 
A vida contrapesa os erros cometidos. 
"A consciência nada tem a ver com a moral, nem com a lei, e pode travar com elas os mais terríveis e mortais litígios: mas é imensamente forte — mais forte que a preguiça ou o egoísmo ou a vaidade."
A vida em linha reta. Letra por letra que completa a palavra, e a palavra que faltava em minha vida – Paz. Paz de consciência, paz apenas, paz de poeta.

"Podemos recuperar a inocência a qualquer momento, desde que reconheçamos e suportemos até o fim o mal e a culpa que nos tocam, em vez de procurarmos culpar o próximo." 
Apenas uma questão de regras, normas, dia após dia, a cada dia, dia a dia. 
Cotidiano, rotina. Todo se completa, tudo que compõe nossa existência no planeta. 
Chance de sentir-me capaz de sê-la, vivenciar a placidez do dia, sem graves problemas. Viver a serenamente as horas. 
Uma derradeira chance de ser feliz e sorrir. Alegre por poder recomeçar. Fazer do mundo minha área de trabalho, meu desktop. Seguir adiante sem olhar pra trás. 
A vida por si mesma e simplesmente. Sem mentiras. Uma vida simples, talvez ingênua e sinceras. Era tempo de recomeçar. 
Não viveríamos mais a sensação que tinha de abandono e solidão, o pranto. Esqueceríamos aos poucos o que passamos juntos, que só nós dois sabemos como foi. Significou muito sentir que sou amado. A porta de saída desse labirinto próprio. 
Opróbrio que seria consertado. 
Se me perdi nas incursões do desacerto, quis prevalecer a recompensa. Nova chance sobre novo teto. Quando nos mudamos para esse apartamento, papai voltou depois de tantos anos.   Quanto eu sentia a falta do meu velho, tanto. Quanto eu queria vê-lo ao nosso lado... perto, fazer feliz com meu novo começo. Recomeçarmos juntos, unidos pelo amor. 
Pedi a Deus a dadiva do esquecimento. Esquecer que a vida furtou-me sua presença. Reatar laços fraterno. Desfrutar do indizível prazer e aconchego. Ouvir cada conselho. 
Anti-herói da minha ousadia.  
A resignação de Ícaro redimido, aquele que sonhou ser um pássaro. Mas “nenhum pássaro poderia voar tão alto se voasse com as próprias asas.”

Comentários

Cida disse…

Uma viagem para o auto-conhecimento.
Nota de rodapé:Há saídas!
"Nada mais universal que o particular".
Muito bom, Gustavo Perez!

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