Pensava já ter superado essa doença. Doce ilusão. Digo doce porque sem o peso desse fármaco a vida parece suave. Hoje pude confirmar, ao assistir um vídeo, o que penso ser a verdade relativa. Quando digo ”verdade” ressalvo o significado relativo da palavra (ou signo). A verdade são várias, em sua acepção. Cada pessoa cria seu próprio conceito de “verdade” a partir da relação que teve com a cultura. Cada pessoa é um universo infinito, portanto indecifrável aos olhos de outrem, inclusive um tanto imprecisa ao próprio ser que a busca dentro de si mesmo e no mundo exterior. Ao arriscar-se definir um conjunto de conceitos e “valores” nos quais acreditamos piamente, o homem muitas vezes se contradiz. Esse conjunto no qual se possa dizer “essa é a verdade” de fato não existe. A realidade se apresenta de maneira inusitada ao longo da vida e estamos sempre reavaliando essa palavra, na qual queremos tanto depositar nossa certeza absoluta.
vale o ditado popular “a ocasião faz o ladrão” o que quer dizer “a cada realidade uma verdade”. Não pretendo me estender em tentar explicar a forma como entendo a vida, pois ela apenas “é”, simplesmente.
Georges Braque, pintor espanhol, contemporâneo de Pablo Picasso, disse certa vez “
A verdade existe, apenas se inventa a mentira”. Voltando ao vídeo que assisti após esse prolixo preâmbulo, talvez desnecessário, o que me marcou foi ouvir da palestrante dizer que “a toxicomania, o vício, o alcoolismo ou qualquer refugio que encontramos nos estados alterados de consciência, são um sintoma e não uma doença como todos acreditam”. Novamente a busca incansável pela verdade. Creio que o senhor, pai, entenda melhor a diferença entre sintoma e doença. Ao menos isso se pode afirmar serem coisas distintas, não é? Dois objetos, dois “signos”, duas representações, sendo que um advém da outro, dependem mutuamente para existirem. Não há doença que não apresente sintomas, não há sintoma que não indique algum distúrbio.  
De fato, nós toxicômanos, ao analisarmos a causa da “doença”, percebemos que a droga e o uso repetitivo, (cíclico, periódico, recorrente, circular) não são a doença em si.  Concluímos que a causa do hábito é atribuída a outros aspectos da vida. Alguns dizem a causa é “a droga de vida” e vivemos a vida na droga e para ela.
É fato que todo usuário, sem exceção, concluí essa análise desse jeito. É como somar 2 + 2. Pela lógica o resultado será sempre inabalável, invariável, imutável e constante = 4. Porém, quando nos damos conta disso, dessa simples equação, a vida já se tornou mais corrompida do que era antes do vício. Essa dedução (uma das três formas de adquirir conhecimento: dedução, abdução e experimentação) nos deixa ainda mais impotente diante da vida. Dois e dois não podem ser iguais a três? Ou cinco? Ou talvez zero, como se acredita quando encharcados da nossa própria cegueira. Infelizmente não. Inevitável que a lógica tenha suas obrigações com a razão.
Quando perdi o rumo da minha existência, digo, não soube mais delinear a caminho que nos leva ao objetivo, a “buscar um sentido”, fiz o que os estudiosos chamam de “transferência de objetos”. Pensando que esses breves segundos, em que o cérebro proporciona uma descarga de dopamina aos neurônios, pudessem suprimir a falta de outro objeto, uma pessoa, no caso.
O vazio que se instalou em mim foi enorme. E por breves instantes, aqueles em que o mundo parece parar de girar, e o tempo passam a não existir, ou não ser tão importante.  Aqueles em que sentimos o conforto, ainda que falso (pérfido e enganoso) que a droga proporciona. É necessário perverter as leis da física pra crer que uma sensação (sentimento, desejo) pode substituir outra. É como trocar o cigarro por bala, ou chicletes. Saciar o desejo que culmina no ato propriamente dito. Do ato de fumar também já não sinto o gosto, o torpor, a “viagem”. Tenho memória de todo que me leva a usar, mas não sinto mais o prazer.
Esse estado de lucidez, ou querendo buscar a lucidez, a razão das coisas, me leva de volta a mim mesmo. Deixo de ter apenas o imperativo do uso, a necessidade de obter e consumar o ato e consumir a droga torna-se mais importante que a própria droga. Usá-la é o comando. R
eafirmando as ideias
da psicanalista “ninguém rouba aos pais, inflige dor e sofrimento, engana, sabota a si mesmo por um objeto de prazer”, mas isso, a droga, se torna um objeto de necessidade. Parece ilógico, não é?
Devemos lembrar que no ato do uso o ser deixa de ser. Perde a obrigação, o vínculo, o contato com o indivíduo que é ele próprio. Assim perde também a ligação com os problemas que afligem qualquer indivíduo. Característica da nossa época em que podemos obter tudo que quisermos. O alívio, o remédio para nossa dor. A compensação por nossas derrotas, por nossas perdas e fracassos. O que preenche nosso vazio, resposta simples fatalista. Menos enigmática do que a pergunta, pois a resposta ao conflito é enigmática. A menos que não se fuja do problema. A menos que o sujeito se torne íntimo do problema, da “macaca”, do acidente que causou a angústia existencial.  Desventura, infelicidade, infortúnio não são parte da vida contemporânea. 

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O conhecimento do bem e do mal não é outra coisa, mas as emoções de prazer ou dor, na medida em que estamos conscientes disso.
Chamamos uma coisa boa ou má, quando é do serviço ou o inverso em preservar nosso ser. Que é quando ela aumenta ou diminui, ajuda ou atrapalha, o nosso poder de atuação. Assim, na medida em que percebemos que uma coisa nos afeta com prazer ou dor, chamamos isso de bom ou mal, de modo o conhecimento do bem e do mal não é outra coisa, mas a ideia do prazer ou dor, que segue necessariamente do que prazeroso ou emoção dolorosa. Mas essa ideia está unida à emoção, da mesma forma como a mente está unida ao corpo, ou seja, não há distinção real entre esta ideia e a emoção ou ideia da modificação do corpo, salvo em concepção única. Portanto, o conhecimento do bem e do mal não é outra coisa, mas a emoção, na medida em que estamos conscientes disso."

Of Human Bondage, or the Strength of the Emotions

Ethics (Spinoza)

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