Coluna de Cláudio Rodrigues - excepcinalmente hoje, segunda-feira
Sobre Divórcio
um romance de Ricardo Lísias
um romance de Ricardo Lísias
Casado há quatro meses, o escritor Ricardo
Lísias folheando ao acaso o caderno de diário de sua mulher, conhecida
jornalista cultural, descobre que ela o trai e mais ainda, o que o perturba, que
ela o despreza. “O Ricardo é patético, qualquer criança teria vergonha de ter
um pai desse. Casei com um homem que não viveu”, escreveu a mulher. Confuso
diante disso, ele sai de casa, refugiando-se em um barracão que mantém como
escritório, onde tenta se recompor. Dividindo-se os capítulos nas etapas da
corrida de São Silvestre, que ocorre na cidade de São Paulo na passagem do ano,
em cada qual relata as etapas do resgate e a recuperação de si mesmo,
intercalando com fragmentos do diário que vai revelando ao longo do livro.
Este é o tema do romance Divórcio, sexto título publicado por este autor que tem se afirmado
um dos mais importantes de sua geração. Lançado pela editora Alfaguara no ano
passado, além de bem recebido pela crítica e pelo público, gerou polêmica desde
o seu lançamento, exatamente por romper os limites entre ficção e realidade ao
confundir o narrador e o autor. Lísias já havia se utilizado deste método em
seu romance anterior, O Céu dos Suicidas,
publicado pela mesma editora um ano antes, em que relata a morte de um amigo.
O rompimento os limites entre ficção e
realidade é uma das tendências da literatura de ficção contemporânea. Dos
autores que se utiliza deste procedimento destaca-se o escritor catarinense,
radicado em São Paulo, Marcelo Mirisola. Em seus textos, entre contos e
romances, Mirisola cria um narrador personagem como uma máscara, uma persona,
mergulhado em seus delírios pessoais e suas histórias de amor, desamor e
depravação, apresentando situações e idéias consideradas fora dos padrões
politicamente corretos, o que vem gerado muita polêmica. Mas apesar do nome
próprio de que se utiliza e alguns dados de sua vida pessoal, seus textos estão
longe de serem auto-biográficos. Entre os romances que mais se aproximam do
método utilizado por Lísias em seus dois últimos títulos, destaca-se O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza, em
que o autor utilizando-se de um narrador na primeira pessoa, relata as
experiências de um pai cujo filho tem síndrome de Down, sendo que o autor
realmente tem um filho com esta característica. Como nos últimos romances de
Lísias, neste livro a história pessoal penetra o espaço do ficcional de forma a
que não se possam distinguir as duas instancias.
Este método de borrar as fronteiras entre o
ficcional e o real num jogo de espelhos, no romance Divórcio causa desconforto o que fez gerar polêmica desde a sua
publicação. O texto foi considerado por alguns críticos um “romance-vigança”,
por expor em suas páginas o seu processo de divórcio e ao se fazer um retrato
de sua ex-mulher, pois a cada novo fragmento do diário que ao longo do livro é
colocado a público, revela-se ser uma mulher fria e calculista.
Defendendo a autonomia estética do romance, Ricardo
Lísias afirma que em Divórcio nada é
real, mesmo que o narrador ao longo do livro afirme por várias vezes o
contrário ao repetir “Estou de fato dentro do livro que escrevo”. E o que se
procura ao borrar as fronteiras entre o real e o ficcional é causar desconforto,
provocar o leitor para tentar tirar a literatura do marasmo, trazer inquietação
para uma ficção que tende a ser acomodada.
O autor utiliza-se de repetições com
alterações que seguem paralelas ao seu esforço para aprender a correr e se
preparar para a corrida da São Silvestre, que acontece no último dia do ano na
cidade de São Paulo, ele intercala cenas das etapas do treino com fragmentos do
diário de sua ex-mulher. E a cada vez que repete um fragmento do diário,
apresenta uma modificação, expondo desta forma a feitura do próprio livro. Como
diz o próprio Lísias em uma entrevista ao blog Brasileiros, o livro pretende colocar e discutir questões do
narrador para um público ainda bastante acostumado aos padrões do realismo do
séc XIX. O narrador moderno já se coloca dentro do jogo ficcional, o que
confunde o leitor que não consegue distinguir o narrador do escritor.
Publicado no mesmo ano das manifestações de
2013, o romance tem a força de um libelo, uma forte carga poética aliada a um
potencial político, atacando a grande imprensa e a comercialização da cultura.
Cláudio Rodrigues
Cláudio Rodrigues
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