Proust e os signos


[O segundo círculo é o do amor. O encontro Charlus-Jupien leva o leitor a assistir à mais prodigiosa troca de signos. Apaixo­nar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É torna-se sensível a esses signos, aprendê-los (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envol­ve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, in­terpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem en­volvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas es­tão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desco­nhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu sig­nificar? Do seio de que universo me distinguia ela?"

Há, portanto, uma contradição no amor. Não podemos in­terpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mun­dos que se formaram sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos de início, senão um objeto como os outros. O amante deseja que o amado lhe dedique todas as suas preferências, seus gestos e suas carícias. Mas os gestos do ama­do, no mesmo instante em que se dirigem a nós e nos são dedi­cados, exprimem ainda o mundo desconhecido que nos exclui. O amado nos emite signos de preferência; mas, como esses sig­nos são os mesmos que aqueles que exprimem mundos de que não fazemos parte, cada preferência que nós usufruímos deli­neia a imagem do mundo possível onde outros seriam ou são pre­feridos. "Mas logo o ciúme, como se fosse a sombra de seu amor, se completava com o double desse novo sorriso que ela lhe diri­gira naquela mesma noite – e que, inverso agora, enchia-se de amor por outro... De sorte que ele chegou a lamentar cada prazer que gozava com ela, cada carícia inven­tada e cuja doçura tivera a imprudência de lhe assinalar, cada graça que nela descobria, porque sabia que dali a instantes iriam enriquecer de novos instrumentos o seu suplício." A contradi­ção do amor consiste nisto: os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme são os mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia, de independên­cia, com relação ao nosso amor.

A primeira lei do amor é subjetiva: subjetivamente o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do amor. O ciúme vai mais longe na apreensão e na interpretação dos signos. Ele é a destinação do amor, sua finalidade. De fato, é inevitável que os signos de um ser amado, desde que os "expli­quemos", revelem-se mentirosos: dirigidos a nós, aplicados a nós, eles exprimem, entretanto, mundos que nos excluem e que o amado não quer, não pode nos revelar. Não em virtude de má vontade particular do amado, mas em razão de uma contradi­ção mais profunda, que provém da natureza do amor e da situação geral do ser amado. Os signos amorosos não são como os signos mundanos: não são signos vazios, que substituem o pensamento e a ação; são signos mentirosos que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a ori­gem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento de um aprofun­damento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um intérpre­te de mentiras. O seu destino está contido no lema "Amar sem ser amado".

Que esconde a mentira dos signos amorosos? Todos os sig­nos mentirosos emitidos por uma mulher amada convergem para um mesmo mundo secreto: o mundo que também não depende desta ou daquela mulher (embora deter­minada mulher possa encarná-lo melhor do que outra), mas é a possibilidade feminina por excelência, como um a priori que o ciúme descobre. O mundo expresso pela mulher amada é sem­pre um mundo que nos exclui, mesmo quando ela nos dá mos­tras de preferência. Mas, de todos os mundos, qual o mais exclusivo? "Era uma terra incógnita terrível a que eu acabava de aterrar, uma fase nova de sofrimentos insuspeitados que se abria. E, no entanto, esse dilúvio da realidade que nos submer­ge, se é enorme a par de nossas tímidas e ínfimas suposições, era por elas pressentido (...) o rival não era semelhante a mim, suas armas eram diferentes, eu não podia lutar no mesmo terreno, proporcionar a Albertina os mesmos prazeres, nem mesmo con­cebê-los de modo exato." Nós interpretamos todos os signos da mulher amada, mas no final dessa dolorosa decifração nos de­paramos com o signo como a expressão mais pro­funda de uma realidade feminina original.]



Gilles Deleuze

Comentários

Liberté disse…
Gostei do colchete.
e dos tigres

blue

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