9 dias

(fragmento do conto 9 dias)
Paixão da minha existência atribulada
Carta para Deus

Caro Deus,

Até agora aguardo uma resposta e desde então tenho andado um tanto amargurado. Já não consigo olhar pras frentes, portanto olho pra baixo quando ando pela rua. Quando muito olho de banda e na hora de atravessar olho de lado.
Aproveito o ensejo pra dizer que o céu está belo aí no alto, mas o mundo aqui embaixo está caindo.
Meu querido pai está com um pequeno problema no olho esquerdo. Meu irmão mais velho. Enfim, dizem que você sabe de tudo...!
Quero apenas confidenciar sentimentos e deixa-los registrado por escrito.
Como os dias que passei sozinho no alto das montanhas, sem bússola, sem relógio, sem mapa. Somente as estrelas pra me guiar e, claro, um prévio conhecimento do caminho.
Passei nove dias andados pela crista das montanhas. Onde, de fato, não há muito como se perder, contanto que não se desça para o vale onde a mata é densa.
Desses nove dias eu muito tenho a relembrar de cada um deles.

Nos primeiros dois dias algo se perde do contato com a cidade. Alguma coisa se perde da relação com os animais domesticados e do contato com as máquinas.
Inicia-se uma ligação mais refinada que requer determinado e precioso cálculo. Uma apuração dos sentidos que se faz fundamental.
O dia vai nascer quando os pássaros desamarrotam suas asas e os filhotes bradam por comida. Quando magicamente o capim inicia um movimento superlativo ao se distorcer na presença da ínfima luz do sol. Quando os ganhos secos fazem um estalido discreto, sussurrando que é chegada a presença do calor cósmico, imperceptível a outros seres.
Pequenos movimentos quase imperceptíveis acusam, indicam, mostram, apontam, revelam, deflagram, denunciam a manifestação de um macro e micro cósmico gigantesco universo que desperta.

Nessa ocasião eu havia recém saído de uma clínica de recuperação de toxicômanos. Fazia apenas quatro meses e quando estive lá internado pensei que nunca mais iria ver esse lugar de que falo agora.
O senhor, meu Deus, me deu o prazer e a chance de perceber as cores e sons da natureza uma vez mais.
Nesse tempo meu pai morava em uma cidade distante e vinha somente por breves períodos. Ah, também havia terminado um relacionamento no qual dediquei o amor que há em meu peito como inevitavelmente eu sempre faço. Arranco um pedaço de mim e me entrego body and soul. E quando acaba permanece uma cratera como se um meteorito houvesse passado.
Porém, a sensação que tinha era de que eu havia sido esquecido. Abandonado à beira do caminho. Como uma fruta podre que se deixa cair das mãos na beira de uma estrada.

Mas naquele lugar, eu não podia me deixar esquecer. Eu não podia, de fato, me abandonar. E cada passo era uma pincelada do destino, e Você me recompensava com a madrugada de sono reconstrutivo.
Por longas e elucidativas noites e dias decorridos até o extremo fim da jornada.

Espero aqui delinear com acurada minúcia cada dia transcorrido, mas no momento, temo cansá-Lo com essa narrativa que parte de um começo assim um tanto vago.
E também, tenho outros anseios que pretendo expor para que fiquem (como disse) no branco dessa tela, aqui registrados.
Quando ao findar das horas vagas, vejo que não há mais nada, tento explorar a mim mesmo.
O fundo dos meus brônquios num sopro profundo, numa batida de coração, na corrosão de um único pensamento lento como a lentidão da folha de outono, e o desalento da renitente e atento do lamento que a esmo se esvai.

Às vezes procuro uma janela acessa nos prédios pra me fazer companhia, mas a única companhia que encontro é o agradável som do jazz.
Às vezes lembro-me do tempo em que escrevia numa máquina de datilografar e bebia vinho na Galeria Chaves e nossa trupe genial de garotos perdidos no tempo. Lembro-me de uma jornada infinita rumo ao tempo da pueril sabedoria, mas ainda sim as estrelas, a lua, o céu, e o cigarro são os meus únicos amigos e fico mais uma vez na companhia do jazz.
O passado é apenas uma fotografia de coisa antiga, mas ainda assim a coisa mais morta que a vida nos traz.
Assim o dia passa, vem à noite e satisfaz meus prazeres tortos com notas dissonantes. assim como os caminhos da estrada a ser seguida, assim como as ruas de uma cidade não planejada, assim como o pensamento, filamento de um tubérculo rizomático. Assim como a cicatriz, lembrança inabalável da ferida.
Assim como eu.


Trecho dos Paraísos Artificiais

  
“Acontece, às vezes, de desaparecer a personalidade, e a objetividade, que é própria aos poetas panteístas, desenvolve-se de modo tão anormal que a contemplação dos objetos externos faz com que você esqueça a sua própria existência e confunda-se,em seguida, com eles. Seu olhar se fixa em uma árvore harmoniosa curvada pelo vento.Em alguns segundos o que seria para o cérebro de um poeta apenas uma comparação bastante natural torna-se realidade para o seu. Primeiramente, você empresta à árvore as suas paixões, seus desejos ou sua melancolia; os gemidos e as oscilações tornam-se eus e, logo, você é a árvore. Da mesma forma, o pássaro que plana no fundo do céu
representa
inicialmente o imortal anseio de planar acima das coisas humanas; mas eis que você é o próprio pássaro. Eu o imagino sentado e fumando. Sua atenção repousará longamente sobre as nuvens azuladas que exalam de seu cachimbo. A ideia de uma evaporação, lenta, sucessiva, eterna, tomará conta de seu espírito, e você aplicará em seguida esta ideia aos seus próprios pensamentos, à sua matéria pensante. Por   equívoco, por uma espécie de transposição ou de quiproquó intelectual, você se sentirá evaporando e atribuirá ao seu cachimbo (no qual você vai se sentir curvado e encolhido como o tabaco) a estranha faculdade de

 fumá-lo."

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