O ódio santo

"Escreve para ti mesmo, recolhido, assombrado."

Jack Kerouac



Mais uma vez me encara a página em branco. A página pálida, branca, fleumática. Esperando que eu diga algo. A página é a palavra que ainda não foi dita. Talvez como as palavras, que aguardam ansiosamente inside a hora de saírem, também as páginas espera o momento de ser desvirginada.
Eu vivo escrever. Nessa gagueira infantil de quem tenta balbuciar o inexprimível.
Sempre escrevi sob a efígie do ódio. O santo ódio. Um signo que recebeu para si um oposto. Não consigo escrever o amor. Sempre escrevi com ódio, por ódio. Sei que odiar é um sentimento ruim. Nunca digo que “odeio” isso ou aquilo, pois acredito na força da palavra. No entanto, odeia-se com finura, fineza, educação. Talvez no intuito de poupar o outro por termos sido parte do evento. Por nós mesmos odiamos.
“Odeio os chineses por estarem somando dívidas a seus karmas” disse o Dalai Lama. Não sei ao certo se entendi, mas onde está o torto? O bom ódio, o Mal bom e o Bem ruim.
Onde mora a ambivalência desse signo? – por onde anda o censurável tortuoso oblíquo desse ódio? Amor e ódio acabam sendo a mesma coisa em si dentro de um conjunto semiológico sem a presença do sujeito, sem a figura do objeto. Odeia-se apenas como forma de figuração verbal, e ama-se também do mesmo jeito.
“Fiz na incessante busca de aferir sentido ao meu afeto. E tendo feito descobri que não havia sentido no verbo. Lexical, semântico ou epistêmico.”
de certa forma o rumo era reto. Como tudo que deseja chegar ao fim de algo. Augúrio de final comprobatório, conclusivo, sintético. Encurto o caminho entre o ----------------------------- e o que escrevo. Num delírio febril d-e d-e-zem-b-ro.
Gosto de escrever quando não tem ninguém vendo, nas madrugadas nos fins de tarde apressados em as pessoas só pensam em si mesmas. Em como chegar do trabalho, em qual hora o caos dará uma trégua. Um estágio quase automático de sobrevivência. Eu também nada penso nessa hora. Virei os olhos pra ruidosos entardeceres que eu mesmo roubei de mim. Não vi resplandecerem auroras que se elevam sobre o céu. O tempo se perdeu. Proust. Não sei se Proust acreditava em Deus. Pedi a Deus que só lesse a carta que escrevi pra ele numa dessas horas, de isolamento. E em segredo. O conteúdo carta é um longo e minucioso relato de uma caminhada que fiz. Os devaneios e segredos que omiti...
O zigzagear sonífero da cobra lambendo fogo trazia seu apotegma divino. 
Então eu era a própria natureza. um anexim sórdido, complexo, perfeito.
Eu era Você.

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