Noites Adentros, NY

p a r t e 5A Gi falou bastante, mas não me disse muito aquele dia. Contou fatos específicos. Alguns até bem suigeneris, por exemplo, o fato de ela ter sido parida em uma tribo de índios. Seu pai, antropólogo e sertanista alemão, enquanto ela nascia na oca, participava lá fora de algum ritual-para-ser-pai com os outros membros da tribo. A mãe deu-lhe o nome de Apuã, que quer dizer água de chuva. Eu brincava que em Belém ou em Londres ela se sentia em casa, (na verdade era uma brincadeira de mau gosto porque ela nunca mais voltou, desde que saiu da tribo, quando seu pai a levou furtivamente para Belém, desde que saiu de casa, acho que ela nunca teve casa). Na cidade seu pai a registrou como Gislene Hildgert. Estudou em colégio de freiras onde aprendeu a fumar. Seu pai voltou para a floresta e já devia estar quase na fronteira com a Colômbia.
Aos dezesseis anos fugiu pra São Paulo, com um primo, ela dizia que era primo (como primo? se ela nasceu na aldeia e era a única filha de Karl Hildgert). O filho da mulher que cuidou de mim ela dizia, o Juca, João Carlos. Tudo bem, tudo bem, foram pra São Paulo. O Juca foi assentar tijolos. E tempo passou. Ela conheceu uma trupe piauiense que se encontravam na mesma situação que ela, sem dinheiro e sem trabalho. Planejavam se tocar pra Portugal. Ela juntou-se a eles e foi. Ah, o Juca também foi.
Desembarcaram em Lisboa dia dezenove de fevereiro (lembro porque é o dia do meu aniversário) de 2001. Eu completava vinte e seis anos, enquanto ela aportava em terras lusitanas com apenas dezoito. Sagitariana do dia oito de dezembro. Sei por que guardo bem datas e nomes.
Em Portugal, seu “primo” Juca, pedreiro de carteirinha, foi direto para a construção civil. Depois de um mês morando em condições subumanas (morava em um quarto de 6m² com mais três rapazes), por causa de sua beleza fora do comum, foi convidada por uma portuguesa a trabalhar em Peniche, em um Hotel. Florbela, a portuguesa, era agente de viagens e fazia esses trambiques. Também convidou a Mel, outra brasileira, para trabalhar nesse mesmo hotel.
Passaram três dias e Mel e a Gi Foram embora, sem se despedir de ninguém, como haviam combinado com a Florbela, de forma que agora ninguém mais sabia o paradeiro delas. Contavam que alguém as esperasse em Peniche. A Gi acreditou na Florbela porque se apaixonou com seu nome. Lembrava as flores da Amazônia e era uma lembrança boa.
Chegando a Peniche, um rapaz as esperava na estação de ônibus. Isso as deixou aliviadas. Foram conhecer suas instalações e seu serviço. O hotel ficava a 500 metros do centro da cidade. Coisa chique, hotel de grã-fino. As meninas adoraram. Peniche é uma cidade linda, rodeada de praias. Fica em uma pequena península ao norte de Lisboa.
Passados dois meses e a Gi criou o hábito de passear na areia da praia, depois do trabalho. Foi quando conheceu o Samuel. Sentada em um banco à beira-mar.
__ Que lindo a amar, eh? – disse Samuel à menina, tentando falar o português. Ela riu e o corrigiu.
__ “O” mar.
__ Uhm.. la mer la mer... O mar. – e disse meio que pra si mesmo como que treinando – que lindo o mar, ahm ..?
Sim, claro. Como não reconhecer a beleza do mar em sua vastidão? Ele não falava inglês. Ela, no colégio das freiras, aprendeu o inglês. Ele não falava o português, mas se esforçava para aprender. Por ser de Le Mont, nas montanhas e por conta da proximidade fronteiriça, ele falava o alemão. Ela compreendia o alemão, por causa do pai, mas não falava. Ela nunca ouvira a sonoridade do francês. Então, pela primeira vez, eles conversaram em um idioma inventado, no qual descobriram que podiam se comunicar. Ela disse que era brasileira, ele contou suas aventuras desde a França até ali de Kombi. Disse que a namorada o deixou para viajar pro Brasil. Alimentava uma espécie de amor e raiva e admiração pelo Brasil.
__ Je n'ai pás plus Geld. – Não tenho mais dinheiro. – ele choramingava. O Sam era cozinheiro profissional. Havia muitos brasileiros em Portugal, mas não em Peniche. Ela sentia-se só. Já não tinha mais assunto com a Hermelinda (era o nome verdadeiro da Mel, que jurava que matava quem contasse). Os dias de maio pareciam intermináveis.

(continua...)
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Comentários

Alice Salles disse…
Pelo menos ainda existiam as flores da Amazônia... pelo menos!
Raquel disse…
Nunca pensei que a Gi fosse descendente de índios, isso por causa da descrição da Josephine. Fiquei surpresa!E mais interessada pela história...
Anônimo disse…
Me diz uma coisa. Gis é uma tentativa para dar docilidade a tanta força?

Esta é a parte que mais gosto:

(...) me aproximar demais. Perto demais de alguém, o suficiente pra que ela pudesse ver minhas fraquezas, minhas feridas que ainda não curaram, e minhas cicatrizes, marcas eternas. O meu maior defeito contribuiu com minha maior virtude. Fujo das pessoas que não pensam a vida como arte, fujo de mim mesmo. Atavismo medieval, de quando a arte ainda não existia, de pensar-me apenas um artesão de letras, um embuste, um engodo, um disfarce.

Sinto que Gis causará o melhor e o pior.
Rounds disse…
aguardarei a continuação.
Menina do mar disse…
(: Peniche é uma cidade LINDA podes crer! E tem cá muitos brasileiros! A propóstito do Amazonas, sabes que tenho uma menina a quem dou apoio (Aulas de educação especial) que veio do Amazonas este ano para cá, chama-se Tamára, olhos e pele de índia, um doce de criança.
Não vale a pena dizer o quanto gostei deste texto...
beijos
roserouge disse…
Linda, esta história!!
Liberté disse…
idependente, do conteudo e dos 20 portugueses que gi levou a danceteria, ou das cartas em segredo escritas sobre a pequena índia, é bom ver a sua mente brilhar neste 2000 inove;

keep going! jonny!
Gustavo disse…
neun

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Liberté disse…
RoseRouge,
quando for ao Porto, poderia ser minha hostess para filmografia deste final de capítulo?
Bruna Mitrano disse…
isso tá muito bem escrito. tudo: forma, conteúdo. vou continuar lendo, ver se seus textos me salvam do meu hiato criativo.
roserouge disse…
Liberté, eu moro em Lisboa!
Gustavo disse…
rsrsr

era isso que eu ia dizer..

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