Foram muitos anos de estrada para aprender a morrer sozinho num mundo de não coisas. Também necessitei comer palavras para saborear poetas de primeira, sentindo que Ginsberg e cummings são visíveis nos propósitos, enquanto Pessoa oculta-se sob diversos disfarces. Difícil foi ver os amigos se transformarem em idiotas viciados em tevês a cabo, empregos seguros e sexo fácil. Eles, os meus parceiros de fogos de artifício, procuram se mostrar muito controlados, preparando o próprio velório com flores de plástico e o mofo da melancolia. Os galos cantam a qualquer hora da madrugada, a chuva cai sem parar ao amanhecer e as vamps que incendiavam o meu corpo, estão gordas, brochas ou partiram dessa para melhor. Não posso mergulhar no fundo dos olhos alheios, temo encontrar a fúria dos enfadonhos e debaixo dos lençóis, acordado, sonho com histórias zens que alguém inventa por mim. Um grilo canta, canta, canta; sombras líquidas, desalinhadas. Os cinzeiros estão vazios, nenhuma tatuagem na carne e a memória com poucas possibilidades de saudades. As horas passam, uma gota d’água na pia, dentro do meu coração ouço outro coração debilitado, e as borboletas amarelo-pálido que bailam à beira da janela são de papel de seda japonês. Será que toca um sino neste momento em alguma parte do mundo? Ainda sou lembrado por quem não lembro? Nunca mais ouvi The Lady is Tramp e para não falar sozinho costuro minha boca. Os políticos e outras bestas de estimação, há muito tomei ojeriza deles, os de longe e os de perto, os conhecidos e os desconhecidos, os mortos, os vivos e os que estão por nascer. Que sujos, desleais e vergonhosos! A indiferença é a grande resposta deles. A servidão, a nossa. Começando pelo voto obrigatório. Sei o que move os bonecos. São os cordéis. Mas quem move os cordéis? Inútil revolta talhada na tarde. Luz adiante tudo luz: os rostos nas colunas sociais barbeados e em boa forma. Aguardam-me crianças famintas nos semáforos e mães barrigudas como se levassem o anti-cristo. Onde estão todos? Quem são esses estranhos arrastando os pés e falando uma língua torta? Que fazer então? Entrar em outros círculos. Um círculo de samurais. Entrar num novo círculo, deixar o velho círculo para trás sem qualquer ressentimento. Deixa Deus com seu mundo, dizia a minha avó. Eles, simplesmente, não fazem mais falta. Há muitos eu os deixei para trás. Há muito eu deixei os artistas do vazio para trás. O escritor famoso escreveu-me uma única linha, perguntando: “Onde está sua alma?”. Não soube responder. Sento-me ao sol da terça-feira e imagino todas as belas coisas que guardo como uma flor que não suportou o calor. É uma velha canção amanhecer todos os dias. As formigas, de variados tamanhos, aproximam-se lentamente, levando pedaços de folhas, restos de açúcar. Elas comem qualquer coisa, inclusive bocados do meu espírito. Baratas do mato, lentas e gordas, lembram bichos de filmes trash. O vento toma toda a casa e a solidão. Com as palavras minha emoção por Rilke, Marianne Moore, Emily. Toda a minha coleção do Chet. Cores caem das páginas de um livro. Eu não quis ouvir a melodia do abismo? Não embebedei os miolos nos contos de Fitzgerald? Não desejei o pó dos nervosos até tocar com a língua as poucas possibilidades de felicidade? As horas passam, e a bonita fumaça corrompida do cigarro me abandonou. Em algum lugar há crimes terríveis, acusações absurdas, lágrimas negras, som de saltos de sapatos femininos, ratos, fanatismo religioso, um odor intenso e doce. Estou sozinho na casa perto do mar. Estou sozinho, recebendo o fresco vento marinho. A sala é mostarda, sem cortinas e da varanda ouço a voz de um róseo e gigantesco cajueiro. Não há crianças, cães, latinhas de cerveja, pagode nem um lindo Ganimedes como anjo ou como puta. Abandonei a tevê num apartamento emprestado e os livros são pássaros que atravessam o silêncio. Os velhos amigos morreram ou estão adormecidos em frente a milhares de canais pagos à cabo. É um céu furta-cor de terça e eu escrevo essa poesia pensando em Al Berto, Corso, Burroughs, Ferlinghetti, em corações amassados! Há muitos livros manchas nódoas para desvendar e uma madrugada inteira que virá, onde penso deixar uma clemência, heróis reduzidos, sonhos químicos, uma caminhada descalço, um banho nu de chuva, um oceano de esperanças, um aceno, uma tristeza apaziguada. Sinto falta de um encanto secreto, coágulos ardentes. Os relógios choram. Um homem maduro me espera dentro de mim. Sentado numa serra, sob uma poeira de estrelas, assobia para a lua surgir. Ele me levará para longe, montado nas suas costas, como um bizarro dragão medieval. Preciso ir. Adeus, baby.
Comentários
Foram muitos anos de estrada
para aprender a morrer sozinho
num mundo de não coisas.
Também necessitei comer palavras
para saborear poetas de primeira,
sentindo que Ginsberg e cummings são visíveis
nos propósitos, enquanto Pessoa
oculta-se sob diversos disfarces.
Difícil foi ver os amigos se transformarem
em idiotas viciados em tevês a cabo, empregos seguros
e sexo fácil. Eles, os meus parceiros de
fogos de artifício, procuram se mostrar
muito controlados, preparando o próprio velório
com flores de plástico e o mofo da melancolia.
Os galos cantam a qualquer hora da madrugada,
a chuva cai sem parar ao amanhecer
e as vamps que incendiavam o meu corpo,
estão gordas, brochas ou partiram dessa para melhor.
Não posso mergulhar no fundo dos olhos alheios,
temo encontrar a fúria dos enfadonhos
e debaixo dos lençóis, acordado, sonho
com histórias zens que alguém inventa por mim.
Um grilo canta, canta, canta;
sombras líquidas, desalinhadas.
Os cinzeiros estão vazios,
nenhuma tatuagem na carne
e a memória com poucas possibilidades
de saudades. As horas passam,
uma gota d’água na pia,
dentro do meu coração ouço outro coração debilitado,
e as borboletas amarelo-pálido que bailam à beira da janela
são de papel de seda japonês.
Será que toca um sino neste momento
em alguma parte do mundo?
Ainda sou lembrado por quem não lembro?
Nunca mais ouvi The Lady is Tramp
e para não falar sozinho
costuro minha boca.
Os políticos e outras bestas de estimação,
há muito tomei ojeriza deles,
os de longe e os de perto,
os conhecidos e os desconhecidos,
os mortos, os vivos e os que estão por nascer.
Que sujos, desleais e vergonhosos!
A indiferença é a grande resposta deles.
A servidão, a nossa. Começando pelo voto obrigatório.
Sei o que move os bonecos. São os
cordéis. Mas quem move os cordéis?
Inútil revolta talhada na tarde.
Luz adiante tudo luz:
os rostos nas colunas sociais
barbeados e em boa forma.
Aguardam-me crianças famintas nos semáforos
e mães barrigudas como se levassem
o anti-cristo. Onde estão todos?
Quem são esses estranhos arrastando os pés
e falando uma língua torta?
Que fazer então? Entrar em outros círculos.
Um círculo de samurais. Entrar num novo círculo, deixar
o velho círculo para trás sem qualquer ressentimento.
Deixa Deus com seu mundo, dizia a minha avó.
Eles, simplesmente, não fazem mais falta.
Há muitos eu os deixei para trás.
Há muito eu deixei os artistas do vazio para trás.
O escritor famoso escreveu-me uma única linha,
perguntando: “Onde está sua alma?”.
Não soube responder.
Sento-me ao sol da terça-feira
e imagino todas as belas coisas que guardo
como uma flor que não suportou o calor.
É uma velha canção amanhecer todos os dias.
As formigas, de variados tamanhos, aproximam-se
lentamente, levando pedaços de folhas, restos de açúcar.
Elas comem qualquer coisa, inclusive bocados do meu espírito.
Baratas do mato, lentas e gordas, lembram
bichos de filmes trash.
O vento toma toda a casa e a solidão.
Com as palavras minha emoção por Rilke,
Marianne Moore, Emily.
Toda a minha coleção do Chet.
Cores caem das páginas de um livro.
Eu não quis ouvir a melodia do abismo?
Não embebedei os miolos nos contos de Fitzgerald?
Não desejei o pó dos nervosos até tocar
com a língua as poucas possibilidades de felicidade?
As horas passam,
e a bonita fumaça corrompida do cigarro me abandonou.
Em algum lugar há crimes terríveis,
acusações absurdas, lágrimas negras,
som de saltos de sapatos femininos,
ratos, fanatismo religioso, um odor intenso e doce.
Estou sozinho
na casa perto do mar.
Estou sozinho,
recebendo o fresco vento marinho.
A sala é mostarda, sem cortinas e da varanda
ouço a voz de um róseo e gigantesco cajueiro.
Não há crianças, cães, latinhas de cerveja, pagode
nem um lindo Ganimedes como anjo ou como puta.
Abandonei a tevê num apartamento emprestado
e os livros são pássaros que atravessam o silêncio.
Os velhos amigos morreram ou estão adormecidos
em frente a milhares de canais pagos à cabo.
É um céu furta-cor de terça e eu escrevo essa poesia
pensando em Al Berto, Corso, Burroughs, Ferlinghetti,
em corações amassados!
Há muitos livros manchas nódoas para desvendar
e uma madrugada inteira que virá,
onde penso deixar uma clemência, heróis reduzidos,
sonhos químicos, uma caminhada descalço,
um banho nu de chuva, um oceano de esperanças,
um aceno, uma tristeza apaziguada.
Sinto falta de um encanto secreto,
coágulos ardentes.
Os relógios choram.
Um homem maduro me espera dentro de mim.
Sentado numa serra, sob uma poeira de estrelas,
assobia para a lua surgir.
Ele me levará para longe, montado nas
suas costas, como um bizarro dragão medieval.
Preciso ir. Adeus, baby.
de Antonio Júnior